Quatro paredes. Um cômodo triangular seria, provavelmente, considerado mal estruturado: o que se faria então com os móveis? Tudo agora era silêncio e ele degustava cada gota dessa ausência. O chefe havia ordenado uma dessas tarefas que qualquer outro da repartição poderia realizar, a vida na verdade é uma enorme repartição. Pensou que essa era uma frase digna de um grande pensador, mas pensadores não são funcionários públicos.
Não havia por que reclamar de sua vida, afinal tudo é poesia e, no seu caso, parnasiana de métrica marcante. Refletiu sobre cada colega seu, todos trabalhando, todos pensando na rotina de seus outros colegas e achando que cada um talvez não veja sentido no ser. A cada dia, enviar os mesmos documentos: “Ricardo, Excelentíssimo é com c?” Trabalhar para viver e manter a vida de outros. Da mulher, dos filhos, da mãe adoentada. Tudo se sustenta comprando e, assim sendo, a vida se torna um grande mercado: um mercado dentro de uma repartição. Seremos substituíveis porque todos podem aprender nossas funções e assim poderão comprar, transformando nossos lares em escritórios, nosso sexo em guia de tramitação de processo e nosso amor em produtos de liquidação.
E então vem a revolta. Aquela mesma revolta que ele sente toda terça-feira às quatro horas. Mas hoje será diferente. Levanta e, sem olhar pra trás, vai embora. Espera que alguém lhe grite - Aonde vai? - Embora. Não agüento mais esse trabalho, essa rotina fria e sem graça. E então diriam - Não faça isso! Ninguém carimba uma ficha de recebimento de ofício como você - E aí tudo ficaria bem. Ele voltaria feliz ao seu trabalho: seria único.
Mas a verdade é que ninguém o vê entrar no carro e pegar a avenida no sentido oposto ao de sua casa, enfiar-se com pressa em um beco deserto e mergulhar de vez na imensidão do não existir.
Gostei. Falo mesmo :)
ResponderExcluirAté senti uma ponta de Marx ali em cima, em "udo se sustenta comprando e, assim sendo, a vida se torna um grande mercado: um mercado dentro de uma repartição. "
Mas eu gostei mesmo da história. E até porque quantas vezes a gente, mesmo tendo o tanto que tem, que já é bem bastante, não se sente assim, né? Querendo fugir de nada ou em direção ao nada?
E onde estão as respostas?
aheuaheuaheuaehua
ResponderExcluirengraçado...mesmo tendo mudado muito a minha visão em relação à obra de Marx, o manifesto do partido comunista foi o livro que mais reli até hoje! Essas coisas marcam nosso coração
achei muito bom, reflete bem os dilemas existenciais de um funcionários público, principalmente quanto ao "trabalhar pra viver a vida de outros..". Mas nossas tarefas às vezes muda...
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