terça-feira, 31 de agosto de 2010

Às paredes

Não se esconda no seguir engrenagem dos relógios, nas cadeiras ambulantes de escritórios, em nós sufocantes de gravatas, no sexo que abriga ou preenche, nos sorrisos frios dos dentes. Não se esconda em amores febris, em palavras sutis - dizem que só elas escondem -, em gestos gentis, no aconchego do abraço, no cigarro do maço, nas conversas sem fim: não fuja de ti. Aonde fores haverá sempre você.

Amigos, família, amores eternos, estão todos sozinhos, fadados (fardados) ao fim (de esquecimento). É ilusão enxergar transcendência entre os seres, só há o existir de cada. Deixe de se esconder nos outros, criatura nojenta. Aceite que você é só e rompa de vez a peça que lhe prepararam.

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Viver dói e estamos sós: alguém quer conversar sobre isso?

domingo, 22 de agosto de 2010

Ser concreto

Vou embalar teu sono na canção de um sorriso sob a luz de um amar - ou a luz de um querer, não decidi ainda. Sei que haverá um abraço. E será um carinho eterno em profundidade, porque o tempo - ah, essezinho - só é eterno ao que nos escapa. E vou chamar os anjos todos: me disseram uma vez que anjo gosta de embalar sono. Dizem que eles trazem harpas e entoam canções de louvor. Acho que é mentira essa história, sabe? Meus anjos vão tocar sanfona - mas bem de leve que é pra você descansar - e vão ler Guimarães pra gente lembrar que é o existir nosso propósito único e temos que fazê-lo bem. Isso enquanto dormimos - te contei que vou dormir também? Vou dormir porque agora eu quero tudo concreto: como é concreto esse sonho, essa luz e o amor que lhe escreve agora.

domingo, 8 de agosto de 2010

Pai

Vejo você com aquele boné velho, sujo de tinta e argamassa. A bermuda rasgada, o rosto cansado mas sorridente ao me ver revirar os entulhos de nossas diversas casas sempre em construção. Algumas vezes trabalhava o dia inteiro, à noite dava aulas e quando voltava a um de nossos lares - sempre tantos e em eternas construções - ia lá pintar parede, erguer pilastra, assentar piso. Agora vejo a mim, esperando você sair para ir correndo pegar suas ferramentas e brincar de enfiar pregos nas madeiras: me fascinava o barulho do martelo, que tantas vezes embalava meu sono e era pra mim a canção sua. Nunca foi pedreiro no sentido técnico capitalista, mas a vida nos diz que sim: erguia paredes de sonhos.

Lembro do modo que falava das bibliotecas e alimentava em mim a imagem de um mundo repleto de vidas diversas, estantes reluzentes, prazeres infindos. Era exatamente assim. Todos os dias você me ouvia pacientemente contar as histórias dos livros que eu trazia e sempre me perguntando "onde foi que paramos ontem?". Íamos a caminho do colégio enquanto você nos fazia perguntas sobre música, ou política e eu sonhava com o dia em que teria um pouco de tanto conhecimento, afinal, nunca alcançaria tudo. E quantas vezes vi você empurrando seus carros nesse mesmo trajeto, por serem velhos e terem como destino o fim ou simplesmente por faltar gasolina. A gente achava graça, ou reclamava de fome.

O certo na vida é que se trilhe caminhos tortos. E foi um desses caminhos - que tanto transformam o ser - que te afastou por um tempo de nós. Nossos encontros ficavam restritos a almoços esparsos e o vazio de casa só a dor preenchia. Amar é superar conflitos. E amamos. No hoje, você me pede opinião sobre as eleições, as revistas, as notícias nos jornais e sei que muitas vezes as acata. Por mais que eu corra a abraçar o mundo com minha ansiedade de criança não deixarei nunca de ser parte de ti, aquele que transcendeu o ser e tornou-se formador: eu, ser humano, você, o pai.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Contra o unitarismo do ser

Vivemos constantemente condicionados à necessidade de sermos. Não na acepção holista do verbo, que abarcaria a plenitude do exato, mas num sentido tosco, limitado, de ser um. A cada vez que nos comunicamos esperam de nós um argumento "coerente", como se coerência fosse necessariamente a imutabilidade da resposta e não o embasamento emocional. Por mais que tentemos exterminarmo-nos através da linguagem, sempre que buscarmos a compreensão sincera de nossos sentimentos iremos nos deparar com o fato de que o ser não é unitário. Perceberemos que amamos várias pessoas ao mesmo tempo e que escolhemos uma por um conjunto múltiplo de fatores - a imposição social, a reciprocidade em um sentimento - e não necessariamente por a amarmos "mais".

Reacionários dirão que tal unitarismo, mesmo que forçado, é necessário à convivência em sociedade, afinal, abraçarmos a multiplicidade que nos é inerente implica em vivermos no caos. Mentiras de alguem que ama fugir de si! Essas pessoas se escondem em uma forma de opressão que nos obriga a fingirmo-nos um só e dissolve entre nós a essência do ser. E posso sim falar em essência neste caso, uma vez que não a defendo como a verdade natural e absoluta: falo da essência como ímpetos diversos, conflitantes, mas nem por isso falsos. A idéia de que a coerência no sentido expresso acima é necessária ao convívio social vem de uma cultura moderna que adora o conceito de eficiência e impõe a maximização desta às relações, aos amores, às posições políticas.

Esse movimento que nos empurra à procura de uma verdade inexorável em nós, só gerou ao longo do tempo guerras entre grupos extremistas e conflitos insolúveis nas relações. Devemos olharmo-nos como vários e mutáveis para, nessa condição, respeitarmos os outros.