sábado, 29 de janeiro de 2011

O Escritório

Ao primeiro beijo coube ocorrer numa terça-feira, dentro do elevador do Ministério. Era um dia quente sob os ternos e, em meio a colegas que carregavam maletas e pilhas de documentos, promoveram um encontro bonito entre os lábios secos. Foi um mandato inteiro de carinhos constantes: ele escrevia recados apaixonados nas guias de tramitação de processo enquanto ela enviava poesias pelo sistema de comunicação interno. O calendário do escritório anunciava a quinta-feira no dia em que ela, no intervalo para o cafezinho, comunicou-o que por nove meses teriam um novo colega de trabalho. Naquele mesmo dia ele foi chamado aos berros à sala do chefe: "Excelentíssimo senhor Ministro, de acordo com o parecer da equipe técnica, atestou-se que os múnicípios localizados na região sudoeste da Bahia encontram-se irremediavelmente grávidos".

No casamento compareceram quase todos os colegas, menos os do departamento de pessoal.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Sobre sereias

Aconteceu um dia desses: na beira do lago, o céu tingiu de rosa o firmamento. Foi um espetáculo rotineiro, como são rotineiros os acontecimentos mais relevantes. Achei que o mundo passava pra mim uma alegria que era meio laranja e tinha cheiro de lago, ou cheiro de vida não sei. A certeza que em mim habitava era a de sentir amor, que é o mesmo de sentir vida, mas em termos valorativos.

Carinhosamente o céu foi me lembrando que não, o que havia de fato era o reverso do haver antes pensado. Era eu quem jogava no mundo um cheiro de lago - ou de amor, ou de vida - que uma moça verdemente plantou em mim. E aí passei a acreditar em sereias...

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Conversa

- Olha que coisa bonita; tem uma formiga na mesa...
- Pois é, já que você tocou no assunto eu acho esse negócio de taxonomia das formigas uma coisa horrível. O afã semiótico da sociedade moderna que busca decompor e classificar o mundo em partes insignificantes a procura do que chamam conhecimento me dá nojo. Temos que encontrar no mundo sistema a compreensão de sua plenitude.
- Agora ela pegou uma folhinha que tava perto do seu copo. Aposto que leva pro formigueiro.
- É isso! No fim das contas estamos condicionados a viver como formigas, percebe? Repetindo o mesmo trabalho alienante que alimenta o formigueiro em detrimento de nosso auto-conhecimento como seres pensantes providos dessa graça que é a vida.
- Engraçado, a folha é grande demais e ela tá tropeçando.
- Eu preciso pensar nessas coisas tantas, muito obrigado pela conversa. A gente se encontra por aí.

...

- Isso formiguinha, vai embora: gente é um bicho muito chato mesmo.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

...

(Escrito em 29 de Dezembro)

Diga à Maria que se aproxima o ano novo. Nunca fui de me ater a datas comemorativas, mas se ela pedisse eu bem que saía de branco e cantando, pra estourar champagne e pular sete ondas. Mas isso não diga a ela, fica só entre nós. É sempre a saudade, essa saudade que toma o meu café, se esconde no meu travesseiro, adentra as páginas de meus livros. Avise que eu enjoei dessa história de saudade e que a partir do ano novo - pra dar esse clima de mudança - eu quero brincar de presença. Eita que eu to vendo a gente enjoando um do outro, viu? Enjoando de rir dessa vida toda, que é engraçada por demais. Diga isso a ela também: que se for o caso de não haver vontade, não precisa vir me ver, só lembre sempre de rir. Aquele riso que o calor de Maria marcou em brasa no meu coração. Vá de uma vez e diga simplesmente que eu quero ela aqui agora. E fala firme pra ela não pensar duas vezes. Que deixemos pra trás um ano inteiro de distância. Ao menos de ti espero notícias e vá com cuidado, Esperança.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

11 de Janeiro: o adeus.

Acho que somente enquanto via o derramar-se sem fim das ondas na praia de Montevideo entendi com clareza a relatividade do adeus. Estivemos num sem numero de lugares a conhecer tantas pessoas e só agora sinto a dor de despedir-me de algo que nao tem forma, nacionalidade, mas que nesse momento se materializa em mim. Um eu que deseja estar no sempre, estendido na infinitude do mundo. Amar é isso: sentir bater forte o coraçao ao lembrar dos amigos em Brasília, Cuzco, Puno, La Paz, Buenos Aires. Sinto o canto das ruas, do barco, dos carros, pessoas, do vento, das montanhas. Humanamente querer abraçar o mundo mas ter sempre as maos atadas pela camisa de força do tempo...

Dentro em breve, voltamos.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

4 de Janeiro: Enfim, Buenos Aires.

Enfim, Buenos Aires. Foram 48 horas de viagem de Sucre até aqui, sem pausa para descanso. Ônibus apertados e sem circulação de ar trouxeram eu, Thiago e alguns vários bolivianos a terras argentinas. Uma ameaça de greve dos transportes na Bolívia e a doença que acometeu um de nossos amigos fizeram com que nos separássemos por alguns dias.Tudo está melhor agora: no caminho para estabilizar-se. As poucas horas que já passamos em Buenos Aires iluminaram a brutal diferença entre esta parte da viagem e tudo que vimos até agora: nada - ou muito pouco - de traços indígenas na população, nada de pequenos prédios, nada de roupas típicas. Até as ruas tem traços europeus.

No bar do albergue uma música tímida embalava alguns poucos estranjeiros que apreciavam uma cerveja. Observando que a conexão do som nos permitia, liguei meu computador e começamos timidamente com um Martinho da Vila, depois forró, frevo etc. Em alguns minutos o bar estava lotado com todos nos fazendo sinais de aprovação e, após algumas cervejas, os visitantes resolveram vir até o computador e colocar na internet alguma música brasileira que conheciam: enfim, chegamos. Aqui, o relógio marca 1:30 da manhã e não descansamos da viagem.
Uma boa noite a todos.

sábado, 1 de janeiro de 2011

1 de Janeiro: Feliz Año Nuevo

Ontem li um artigo do Mario Vargas Llosa sobre o "Cem anos de Solidão" do García Marquez. Dizia que o livro questionava a literatura ocidental marcada pela separação entre tempo e espaço. Marquez reuniria essas duas dimensões do existir. Fiquei um tempo refletindo e procurando esses elementos no que tinha de memória da obra, até desistir.

Ainda ontem liguei para minha família a desejar um feliz ano novo e ouvi suas vozes metálicas transmitidas pelo skype. Eu em Sucre, eles em Brasíllia. Lá, já quase haviam transposto o limite ritualístico da meia-noite, aqui a cidade ainda fervilhava nos preparativos pra festa. Pensei em todos que estão distantes, na saudade, no amor. Ri-me de estarmos tão distantes, vivendo momentos tão diferentes, mas estarmos ao mesmo tempo tão ligados: ligados na idéia de um nós que transcende tempo, espaço e se transforma num querer bem.

Que o próximo ano seja de querermo-nos, amigos. Um feliz ano novo ou, com tanto repetimos aqui, Feliz Año Nuevo.