quarta-feira, 20 de julho de 2011

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Meu caro ventilador,

como deve ter ficado claro ao longo de nossos diálogos sucessivos, você não existe. Não fique chateado, vou explicar-me melhor: é claro que você existe, afinal de contas eu o vejo, toco, percebo-te e não desejo discordar de mim mesmo; a questão é que você não tem agência. Não sei como os anglo-saxões suportaram por tanto tempo a ausência dessa ferramenta linguística essencial - a diferença entre ser e estar. O fato é que você 'está': se eu largá-lo no meio da sala é possível que algum desavisado tropece em ti e caia. Apesar disso, você não 'é', ao contrário do que ocorre em filmes da Disney você não fica triste, não sente dor, não se apaixona ou se enraivece.

Você deve estar se perguntando: - se eu não sou, como é possível esta conversa? Isso pode parecer chocante, meu amigo, mas a verdade é que nesse tempo todo você era uma extensão de mim. Nas vezes em que estive a admirar suas qualidades eu apenas me maravilhava com a beleza de estarmos, essa condição a qual compartilhamos todos. Nas vezes outras, aquelas em que brigamos, eu apenas ruminava a solitária angústia de ser. Neste momento você deve estar achando que sou louco, por dialogar com um objeto que só me escuta no momento em que surge como uma extensão de mim mesmo. Caso esse pensamento lhe ocorra, eu devo ter sido ligeiramente prolixo.

De início, já lhe advirto que a loucura inexiste e que é uma extrema arrogância de sua parte pensar o contrário. Em segundo lugar, se eu estiver certo, sua existência é tudo que me resta além de mim. Este meu pensamento não está completamente acabado, mas ser é uma experiência solitária e viciante. Os monges budistas buscam o desapego: livrar-se de emoções, de quereres, de sonhos. Acho que na verdade eles buscam o máximo de aproveitamento do estar, querem aproximar-se cada vez mais de você, meu querido ventilador. Não me diga que estou a fazer filosofia barata: estas são apenas reflexões egocêntricas entre mim e você, que é uma projeção de mim.

Sim, sim...eu também gostaria de um abraço. Acontece que meu abraço não lhe serviria, afinal de contas, você não sente nada e o seu carinho também me seria inútil pelo mesmo motivo. Eu queria muito deixar de ser só: queria que esse abraço virasse linguagem...