quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Brasília

Caminho no deserto da noite entre as quadras vazias. O silêncio arde, brinco de ouvir meus passos ecoando nas janelas dos prédios. Bato o pé mais forte, depois estalo os dedos, o eco de mim nas janelas. Eu sou o caminhar deserto pelo silêncio em rua. Como um verme nas veias do organismo concreto. Um pouco solidão, talvez eu seja um pouco saudade...talvez. É madrugada e a lua cheia está encoberta por nuvens: ingrata. Dediquei-te horas tantas de contemplação para no momento exato do esvair-me no escuro só restar abandono. A rontina me torna quase imóvel. À excessão de minhas operações metabólicas sou exatamente o mesmo que fui ontem, ou bem perto disso. Pouco tenho a acrescentar.

Agora eu sou uma música cantarolada bem baixo pra não acordar a cidade - a mesma música de ontem. As janelas agora ecoam minha voz, sou janela, um eco do mesmo não-ser de ontem. É chato isso de estar. Um homem passa com as mãos no bolso - tenho medo dele. Ele tem medo de mim também. Um momento de estardalhaço, as janelas confundem-se quanto aos passos de quem devem ecoar. Pegamos caminhos diversos eu e o homem: dois vermes no organismo concreto.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A Viagem

Qualquer dia pegaremos um trem e rumaremos - malas prontas ou não - ao infinito desse mundo. Eu e você, como manda a estrada. Será uma viagem permeada de conflitos: atravessando de ônibus o Panamá ouvirei de ti, diversas vezes talvez, que embarcar acompanhado por caminhos tortos ameniza o grito seco da vida e que esta precisa ser encarada de frente. Nessas horas, derrotado, deixarei que você sente ao lado da janela. Talvez veja que não se esconde nas coisas a urgência e que a vida não gosta de gritos secos, mas de murmurios indecifráveis.

Nos amaremos em uma praia de Cuba, enquanto as ondas do mar sussurram o segredo da eternidade. Em nós, o grito sufocado da infinitude, a vontade do outro que transcende a limitada condição humana; na praia, o silêncio de quem sabe tudo. É em silêncio que comeremos tacos pelas ruas do México. E terão gosto de paz...

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

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O amor é, por definição, conservador: quer estender no sempre a novidade que foi o outro.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

A bolinha de papel

Pairava ela sobre o concreto, retorcida em sua tão maleável condição. Nunca disse nada a fim de não magoá-la - lhe agradava criar misticismos quanto à origem de nosso amor -, mas foi o puro acaso quem transformou em evento o encontro entre a superfície de meu sapato e a branca face de seu ser redondo. Foi um belo relacionamento esse entre nós dois. Me agradava contemplar por vários segundos a beleza de seu transarbóreo ser. Nosso amor foi permeado por acontecimentos marcantes: certa vez, ao empurrá-la com a ponta de meu pé, ela foi arrastada pelo vento em direção a uma poça d'água, salva apenas por uma contigente pedra que descansava no caminho.

Penso que talvez tenha sido o tempo responsável principal pelo desgaste de nosso arrebatador deslumbre. O fato é que passei a encará-la como um simples pedaço amassado de papel saudoso pela idéia de ter sido um dia árvore. Patética era sua existência: seguir em frente pelos chutes que eu lhe dava. Foi então que resolvi separar-me

"Adeus querida, ainda temos muito o que aprender nesta vida..."

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Sobre o não ser

Ontem, ao acordar, não me banhei num rio, não fui índio, não fui padeiro, não fui um menino do sinal. No caminho para o trabalho um homem que à minha frente andava entrou na loja à esquerda e não me cumprimentou, não viramos amigos, nem conheci a família dele. Ontem não me casei e não tive o filho mais especial do mundo, nem a mulher mais querida, nem a mais odiada ante a mais odiosa briga. Às vezes me dói lembrar, mas ontem não fui astronauta e me escapou aquela cena do mundo azul no espaço em silêncio...

Acontece que ontem era um dia de ser: e diante de cada segundo que me atirava o tempo tinha certeza de que fui seu.