sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Sobre o não ser

Ontem, ao acordar, não me banhei num rio, não fui índio, não fui padeiro, não fui um menino do sinal. No caminho para o trabalho um homem que à minha frente andava entrou na loja à esquerda e não me cumprimentou, não viramos amigos, nem conheci a família dele. Ontem não me casei e não tive o filho mais especial do mundo, nem a mulher mais querida, nem a mais odiada ante a mais odiosa briga. Às vezes me dói lembrar, mas ontem não fui astronauta e me escapou aquela cena do mundo azul no espaço em silêncio...

Acontece que ontem era um dia de ser: e diante de cada segundo que me atirava o tempo tinha certeza de que fui seu


- lembranças -

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Luiz Tatit

Sempre que alguém
Daqui vai embora
Dói bastante
Mas depois melhora
E com o tempo
Vira um sentimento
Que nem sempre aflora
Mas que fica na memória
Depois vira um sofrimento
Que corrói tudo por dentro
Que penetra no organismo
Que devora
Mas depois também melhora

Sempre que alguém
Daqui vai embora
Dói bastante
Mas depois melhora
E com o tempo
Torna-se um tormento
Que castiga, deteriora
Feito ave predatória
Depois vira um instrumento
De martírio duro e lento
Uma queda num abismo
Que apavora
Mas depois também melhora

E vira então
Uma força inexplicável
Que deixa todo mundo
Mais amável
Um pouco é conseqüência
Da saudade
Um pouco é que voltou
A felicidade
Um pouco é que também
Já era hora
Um pouco é pra ninguém
Mais ir embora
Vira uma esperança
Cresce de um jeito
Que a gente até balança
Enfim
Às vezes dói bastante
Mas melhora
Enfim
É só felicidade
Aqui agora
É bom
É bom não falar muito
Que piora

terça-feira, 16 de agosto de 2011

...

Desde criança ele a via no céu e sonhava com o dia de abraçá-la nas nuvens. Aos dez anos disse que seria aviador e construiu seu primeiro aeromodelo. Na juventude concentrou-se nas leis da física e buscou construir um objeto que permanecesse eternamente no ar. Teve vários amigos, algumas namoradas, sempre respeitou sua família, mas a verdade é que o mundo é tão interessante à distância quanto é insuportável por dentro. Viver era encantadoramente tedioso e seu desejo era tão somente livrar-se da rotina, experimentar do mundo apenas o que dele era paixão. Deixar-se ficar era um tremendo despropósito.

Anos se passaram e às invenções fracassadas se juntaram as rugas. Certo dia, já com seus duzentos anos, o velho teve um arroubo de maturidade e percebeu que a física pouco importava em questões transcendentes: arrancou as asas de um ornitorrinco mágico e voou ao encontro de seu amor eterno. Um pouco à direita do arco-íris e já bem perto de Deus lá estava ela, aquela que por tantas noites lhe tirara o sono, linda, de um sorriso exuberante: a Liberdade. O velho, com os olhos úmidos, tentou retê-la em seus braços, mas era impossível. A liberdade continuava impassível, absorta em silêncio celeste e qualquer tentativa de tocá-la transpassava seu espectro incandescente.

O velho não se arrependeu nem quis voltar ao seu mundo pequeno, mas pensou que talvez fossem apaixonantes e despropositadas as coisas todas.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Drummond

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé,
comprida história que não acaba mais

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.