quarta-feira, 30 de março de 2011

Desfazer

Se não me engano era mês de agosto quando resolvi me desfazer de tudo aquilo que não tivesse um bom motivo para ali estar. Se algo, por mínimo que fosse, me parecesse sobressalente no sistema do existir tinha como destino certo a amplitude do esquecimento. Comecei - diria que obviamente - por atirar às traças os livros, depois computador, escrivaninha, relógio. Percebi que não precisava de roupas para seguir no passar da vida. Eu não precisava de música, ou de qualquer outra forma de arte, linguagem, nada que surgisse da interação entre pessoas: eu não queria a inutilidade das gentes. Os alvos primeiros foram aqueles conhecidos distantes que nos distribuem tontos sorrisos esporádicos. Gradativamente fui chegando aos amigos mais próximos e à família, seres que simplesmente distribuem tontos sorrisos e enfadantes rancores cotidianamente. O desfazer me proporcionava um prazer enorme, eu tinha certeza de estar caminhando rumo ao encontro de minha essência.

Depois de tanto trabalho, quando livrei-me daquela insignificante tampa mordida de caneta escondida debaixo da cama já inexistente, entendi: desnecessário era eu.

sábado, 26 de março de 2011

O vazio

Aconteceu há uns dias: eu andava tranquilamente, ali pelas quadras do Plano, quando um vazio começou a me acompanhar. Eu entrava numa loja ele vinha junto, ia comigo ao cinema, ao parque, lia comigo o jornal. O vazio é uma dessas figuras carentes que quando agarram o sujeito não o largam em momento algum. De início me incomodava essa relação sufocante, mas com o tempo passei a ser indiferente, consequência óbvia para quem vive acompanhado deste tipo de coisa. Digo coisa porque não sei exatamente como chamá-lo, não é bem um sentimento, antes seria o não-sentimento, ou a não-companhia, enfim, o não-ser.

Desde o momento em que o infeliz acaso me revelou o encontro com o vazio, só sei falar dele. Quando deu-se tal infortúnio? Não sei ao certo; imagino que ele me apareceu justamente quando perdi um amor. Pode ser isso...acho que vou chamar esse vazio de saudade.

domingo, 20 de março de 2011

Quintana

Eu agora - que desfecho!
Já nem penso mais em ti...
Mas será que nunca deixo
De lembrar que te esqueci?

Gil

"A paz invadiu o meu coração
De repente, me encheu de paz
Como se o vento de um tufão
Arrancasse meus pés do chão
Onde eu já não me enterro mais

A paz fez um mar da revolução
Invadir meu destino; A paz
Como aquela grande explosão
Uma bomba sobre o Japão
Fez nascer o Japão da paz
(...)
Eu vim
Vim parar na beira do cais
Onde a estrada chegou ao fim
Onde o fim da tarde é lilás
Onde o mar arrebenta em mim
O lamento de tantos ais"

quinta-feira, 17 de março de 2011

Nesta tarde

A voz de Chico César ecoa frágil pelo quarto, "e aí você surgiu na minha frente". Eu, olhando os livros na estante percebo, ou decido, que mais um alguém terminou em mim. Pego o violão na parede e sorrio: restará sempre nós dois.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Impressões

Engraçado, há alguns minutos você saía de casa enquanto fazia recomendações envolvendo ligações e documentos importantes e à medida em que fechava a porta dizia "eu te amo". Na Líbia, opositores ao governo disparam tiros de canhão, lutando pela democracia. Você fechando a porta, revoltosos na Líbia, a televisão de LCD reproduzindo o jornal e um homem - um saco de batatas nas costas, as mãos rachadas pelo esforço, pele negra e barba branca - revirando o lixo do bloco onde moramos.

Entro no carro e dou partida. Ele se move, o que deveria ser algo mais impressionante do que parece à primeira vista. Vejo no tapete do carro um grampo de cabelo que você deixou na noite passada e penso que o amor inteiro é esse grampo. Penso que sou esse amor que transcende o eu e se encontra ali, no tapete do carro, mas não uso exatamente essas palavras na minha reflexão. Uma moça atravessa a faixa de pedestres e eu paro. Um pardal voa de uma árvore a um poste. Eu não costumo voar. A moça chega ao outro lado, volto a andar,125 pessoas entram em um avião e embarcam para Belém. Segunda-feira, um restaurante no centro e ele pede a mão dela em casamento: ela esta grávida e será uma menina, embora ambos não saibam.

O grampo desliza no tapete do carro. Eu, na condição de grampo que transcende o amar, dirijo o carro à procura de ser. Não há o que criar, viver sufoca.