quinta-feira, 13 de maio de 2010

O Abraço

O Sol do meio-dia o queimava por inteiro: os braços, o rosto, a consciência. Já não sabia se o ônibus era quem o dirigia. Pensava nas crianças, o menino do meio que desenhara disforme o paquiderme automotivo na folha inteira, tornando o pai identificável apenas pela seta apontando o lado do motorista. 'O meio-dia existe pra gente lembrar que é pequeno'. Não foi nesses termos formulada a reflexão, lê-se aqui a tradução possível do que restou nas cinzas da já citada consciência - a dele ou a minha. Um carro saiu apressado do cruzamento, é preciso frear a fim de permitir a continuidade da existência. Uma mulher gorda subiu as escadas, achou que ela não passaria na roleta, mundo injusto esse que nos exige milhares de adequações; depois outra com cinco filhos, dois gêmeos no colo, um outro catarrento arrastado pela mão e os mais velhos a se adiantarem sobre os assentos preferenciais. E o Sol a transpirar calores.

Era dia de pagamento aos atendentes de telemarketing. Ela corria apressada ao banco para retirar o dinheiro que simbolizava o paradoxismo do capital viver: receber para pagar financiamentos que voltavam aos bancos. Pensou que são todos uns filhos da puta e esse pensamento engendra a exata essência de sua gênese - há coisas que nem o meio-dia destrói. Saiu apática com o dinheiro que não daria pro mês mas, ante ao calor soberano decidiu-se por uma coca-cola na venda do outro lado da rua. Atravessou de uma vez a faixa de pedestres a pensar talvez em como nutrir o feto que trazia há menos de um mês, já que o pai se perdeu por aí depois de uma noite no frevo.

E então veio o ônibus, na categórica travessia da faixa. Escreviam um ângulo reto - o referido meio de transporte público e a faixa destinada à segurança de pedestres - sendo a moça, já que adentramos matemáticos termos, o ponto de origem em tal encontro fatídico. Fora um abraço bruto (como são brutos muitos abraços) esse entre as ferragens e o corpo frágil da grávida inadimplente. E o Sol a queimar o asfalto.

2 comentários:

  1. A dor que fica, o braço delicado do feto nem formado...

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  2. Diariamente somos abraçados, por taxas, contas, tarefas difíceis, fechadas no trânsitos, buracos no asfalto...e morremos um pouco a cada dia com sol a nos queimar o corpo e o asfalto, destruindo vagarosamente nossa existência. Nesse abraço da vida, os únicos que continuam presos às ferragens, somos nós.

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