terça-feira, 3 de agosto de 2010

Contra o unitarismo do ser

Vivemos constantemente condicionados à necessidade de sermos. Não na acepção holista do verbo, que abarcaria a plenitude do exato, mas num sentido tosco, limitado, de ser um. A cada vez que nos comunicamos esperam de nós um argumento "coerente", como se coerência fosse necessariamente a imutabilidade da resposta e não o embasamento emocional. Por mais que tentemos exterminarmo-nos através da linguagem, sempre que buscarmos a compreensão sincera de nossos sentimentos iremos nos deparar com o fato de que o ser não é unitário. Perceberemos que amamos várias pessoas ao mesmo tempo e que escolhemos uma por um conjunto múltiplo de fatores - a imposição social, a reciprocidade em um sentimento - e não necessariamente por a amarmos "mais".

Reacionários dirão que tal unitarismo, mesmo que forçado, é necessário à convivência em sociedade, afinal, abraçarmos a multiplicidade que nos é inerente implica em vivermos no caos. Mentiras de alguem que ama fugir de si! Essas pessoas se escondem em uma forma de opressão que nos obriga a fingirmo-nos um só e dissolve entre nós a essência do ser. E posso sim falar em essência neste caso, uma vez que não a defendo como a verdade natural e absoluta: falo da essência como ímpetos diversos, conflitantes, mas nem por isso falsos. A idéia de que a coerência no sentido expresso acima é necessária ao convívio social vem de uma cultura moderna que adora o conceito de eficiência e impõe a maximização desta às relações, aos amores, às posições políticas.

Esse movimento que nos empurra à procura de uma verdade inexorável em nós, só gerou ao longo do tempo guerras entre grupos extremistas e conflitos insolúveis nas relações. Devemos olharmo-nos como vários e mutáveis para, nessa condição, respeitarmos os outros.

3 comentários:

  1. adorei toda a coincidência de assuntos entre um pouco do que conversamos hoje e o que você postou aqui no blog.
    sobre as mentiras consensuais que te disse:

    Existem pessoas felizes e pessoas infelizes, e todas elas se questionam. Umas bebem champanhe e outras água da torneira, e se fazem as mesmas indagações. Se existe uma coisa que nos unifica são as dúvidas que trazemos dentro. São pequenas angústias que se manifestam silenciosamente, angústias que não gritam, ou gritam somatizadas em úlceras, insônias e depressões. Angústias diante das mentiras consensuais.
    O quê são mentiras consensuais? São aquelas que todo mundo topou passar adiante como se fosse verdade. Aquelas que ouvimos de nossos pais, eles de nossos avós, e que automaticamente passamos para nossos filhos, colaborando assim para o bom andamento do mundo, para uma sanidade comum. O amor, o sentimento mais nobre e vulcânico que há, tornou-se a maior vítima deste consenso.
    Mentiras consensuais: o amor não acaba, não se pode amar duas pessoas ao mesmo tempo, quem ama quer filhos, quem ama não sente desejo por outro, amor de uma noite só não é amor, o amor requer vida partilhada, amor entre pessoas do mesmo sexo é antinatural.
    Tudo mentira. O amor, como todo sentimento, é livre. É arredio a frases feitas, debocha das regras que tenta lhe impor. Esta meia dúzia de coordenadas instituídas como verdade faz com que muitas pessoas achem que estão amando errado, quando estão simplesmente amando. Amando pessoas mais jovens ou mais velhas ou do mesmo sexo ou amando pouco ou amando com exagero, amando um homem casado ou uma mulher bandida ou platonicamente, amando e ganhando, todos eles, a alcunha de insanos, como se pudéssemos controlar o sentimento. O amor é dono dele mesmo, somos apenas seu hospedeiro.
    Há outros consensos geradores de angústia: o mito da maternidade, a necessidade de um Deus, a juventude eterna. Sobem e descem de ônibus milhares de passageiros que parecem iguais entre si, porém há entre eles os que não gostam de crianças, os que nunca rezaram, os que estão muito satisfeitos com suas rugas e gorduras, os que não gostam de festas e viagens, os que odeiam futebol, os que viverão até os cem anos fumando, os que conversam telepaticamente com extraterrestres, os ermitões, enfim, os desajustados de um mundo que só oferece um molde.
    Todos nós, que estamos quites com as verdades concordadas, guardamos, lá no fundo, algo que nos perturba, que nos convida para o exílio, que revela nossa porção despatriada. É a parte de nós que aceita a existência das mentiras consensuais, entende que é melhor viver de acordo com o estabelecido, mas que, no mínimo, não consegue dizer amém.

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  2. procurar a verdade absoluta é sem dúvida uma busca inútil. Todos nós buscamos nossas verdades e levamos a vida toda para descobrir que elas são relativas, tão relativas que ao longo do tempo, não sabemos mais o que estávamos buscando e acabamos nos perdendo em nossas buscas. Ao nos misturarmos com outros, também perdidos em suas buscas, formamos uma multidão de perdidos vagando como zumbis por uma vida inteira. Aqueles que se encontram, esses sim, fazem a diferença.

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  3. ótima análise!

    Excelente o espaço de reflexão aqui.

    Seguirei.

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